terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A beleza do porre

Imagens de bebidas concorreram no prêmio Nikon de fotos microscópicas: Blood Mary.

O meu primeiro porre foi no réveillon de 2003. Talvez tenha sido em 2004 ou 2002, não me recordo ao certo. Eu e mais quatro amigos nos reunimos no meu antigo trabalho. Cada um com algumas garrafas da bebida favorita: vodka, cerveja, vinho, uísque – a maior parte adquirida poucas horas antes, numa distribuidora nada ortodoxa que não sentia remorso em vender álcool para menores. 

O resto é história: ligamos o som no máximo e bebemos. Não desejamos votos de felicidade, não trocamos palavras afáveis, nem tampouco fizemos quaisquer mandingas para ter sorte no ano que se iniciava. Apenas bebemos. E o único indício de que eu estava realmente de porre surgiu quando precisei caminhar até o banheiro: o piso teimava em esquivar-se dos meus pés. No momento em que desci a braguilha e joguei a cabeça para trás (os homens entendem a importância do gesto) senti o mundo girar numa velocidade incrível. Nunca tinha sido tão feliz.

Algumas horas depois a aridez da garganta e o cansaço do corpo nos empurraram porta a fora. Caminhamos até o final da rua conversando em paz. Na esquina nos despedimos e seguimos cada qual a direção da própria casa, satisfeitos.

A minha era a mais distante de todas. Quando cheguei me despi e deixei o frio da madrugada acalmar a brasa do meu corpo. Deitei e novamente o mundo girou – e a cada instante daquele carrossel o único pensamento que latejava na minha mente era o desejo daquela sensação nunca acabar. Não tive ressaca, nunca tive.

A partir daquele dia entendi o efeito da bebida nos homens. Entendo que todo ritual de celebração e luto deve ser guiado pelo torpor do álcool. Há certas coisas que nem o tempo pode mudar. 

Cosmopolitan
Dry Martini
Pina Colada
Saquê
Uísque
White Russian

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os ventos do norte não movem moinhos

Fotos: Benedito Braga



A primeira ideia que surge quando se propõe a escrever sobre algo é falar daquilo que se vivenciou, os laços que mantém com o assunto, compartilhar experiências e a sabedoria adquirida com ela – mesmo que na maioria das vezes o papel testemunhe apenas erros monumentais. O meu problema é outro: nunca participei da maioria dos assuntos dos quais escrevo. Os meus textos são, na maioria das vezes, expectativas. O que não impede que eu cometa os mesmos erros monumentais.

E entre todos os assuntos dos quais não domino, a beleza é o mais óbvio. Não sou bom com sensações e para falar sobre o belo é preciso bem mais do que normas gramaticais. É necessária uma sensibilidade para fazer da própria prosa o reflexo da arte. Novamente, me calo.

A verdade é que, mesmo analfabeto, o corpo impele a mão para os rabiscos. É a necessidade da alma de se fazer escutar mesmo que por meios obtusos. E são nesses rastros amorfos de grafite que resta a vida.








quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O tom vermelho da terra

Fotos: Murillo Di Maione


Apesar das inúmeras viagens e passeios programados pela minha antiga escola primária, participei de apenas um: uma visita ao Zoológico. A professora nos entregou um papel com o pedido de autorização para os pais com uma semana de antecedência e durante todos esses dias a visita tornou-se o principal assunto do recreio. Parte dos alunos contando feitos heroicos da última visita com parentes (como quando pularam dentro do cercado do leão para apanhar um brinquedo), ou simplesmente aguçando a curiosidade da outra parcela dos estudantes que ainda não conheciam os animais do parque (na qual eu estava incluso).

No dia da visita, eu e todas as crianças da escola estávamos preparadas para aquele pequeno safári. Logo estava na escola junto com uma turba de crianças ensandecidas para conhecer um outro mundo. As promessas eram muitas e a maioria não acreditava nas descrições de colegas sobre determinados animais – como uma cobra gigante de duas cabeças que ficava escondida dentro do vidro dos répteis. Partimos. E durante o curto percurso éramos postas a par de como proceder em todo tipo de eventualidade (ao menos as mais prováveis para crianças entre cinco e oito anos de idade dentro de um parque).

Logo na entrada avistamos o primeiro animal. Um avestruz observando curiosamente aquela manada de crianças de uniforme azul. Enquanto o guia descrevia as características da espécie, a maioria dos alunos zombava da possibilidade daquela galinha supervitaminada ser uma grande velocista, quiçá com um homem na carcunda. Naquele momento não discutíamos qual pai tinha o carro mais veloz ou de quem era melhor vídeogame, apenas falávamos sobre esse mundo que existe além das nossas casa e que as páginas dos livros descreviam de forma tão insossa.

Apesar dos nossos pequenos passos, não sei precisar de quantas formas aquele passeio nos trouxe mais perto daquilo que chamamos de “ser homens”. Talvez o senso de responsabilidade de manter o grupo unido, ou o rubor de servir de apoio quando algumas das meninas não tinham coragem de encarar as cobras ou jacarés. A mais importante ainda poderia ser a descoberta de que existe um mundo onde o verdadeiro tom é o vermelho da terra. Infelizmente sei que para a maioria das crianças de hoje esse mundo só é visível por meio da internet. Não há cheiros, toques e a vista só é aquela permitida pela resolução do vídeo.

O Zoológico está fechado. E, como na maioria das vezes em que algo realmente bom fecha as portas, a administração pública é a grande culpada. Aquele parque era a única ligação sensorial entre Goiânia e o resto do mundo. O zoo também era a principal fonte de inspiração para gerações de escritores, historiadores, pesquisadores, que pela primeira vez sentiram, num pequeno ponto do Centro-Oeste brasileiro, que faziam parte de algo maior.






quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Muito FODA

Orgamo visual - a arte de Theo Altenberg





A pintura sempre me pareceu uma forma de arte passiva. O observador muito raramente é sacado de sua posição confortável no sofá para o mundo exposto pelos pincéis. Theo Altenberg mudou minha perspectiva sobre essa relação. As obras do artista alemão são ativas, a textura exótica das telas parece acariciar as pupilas, uma sensação de prazer que nunca antes tinha vivenciado (nem mesmo com Magritte). Talvez o melhor termo para definir essa nova relação entre observador e obra (pelo menos minha) seria um orgasmo virtual.







domingo, 16 de janeiro de 2011

Pratas da Casa: a harmonia da luz


O fotógrafo Renato Conde (ele trabalha no O Popular) é um dos poucos com sensibilidade para captar em situações simples momentos extraordinários. Nesta pequena seleção, pautas com espaço nos jornais todos os anos, como as cavalhadas de Palmeiras de Goiás, são apresentadas com um novo olhar. De certo modo, Conde despe uma harmonia encontrada apenas por poucos, uma simetria natural dos homens e seus sentimentos. Aproveitem.





Dona de Casa em uma pesquisa com LSD em 1956

A vida marcada na pele




Um livro que traz um pouco da vida dentro das prisões na Rússia pós-comunismo. “Russian Criminal Tattoos” apresenta um série de fotografias dos prisioneiros e e de suas tatuagens artísticas. Dentro das celas, as tatuagens tem o papel de classificar hierarquicamente os condenados, sendo impressas ou apagadas da pele do condenado de acordo com a ascensão ou queda de cargos – algumas vezes de forma forçada. As marcas na pele de cada prisioneiro também formam uma biografia, mostrando como foi a vida dele dentro do crime por meio de um complexo sistema de símbolos. O livro mostra uma coleção com mais de 3 mil desenhos feitos pelos prisioneiros.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Bob Dylan por Martin Scorsese


Estou com o DVD “No Direction Home: Bob Dylan”, um documentário de Martin Scorsese sobre a vida do que foi considerado o maior músico do século XX. O filme deixa de fora as fofocas da vida pessoal do cantor e foca no que interessa: música. Entre os entrevistados, gente de peso como Joan Baez, Allen Ginsberg, Dave von Ronk, Suze Rotolo e Pete Seeger; Ainda não assisti o filme por falta de tempo, mas devo fazê-lo em breve.

Para quem procura fofocas de Bob Dylan, eis uma retratada em “Crônicas”, sua autobiografia. Certa vez Dylan foi abordado numa praça por um fã que pediu para tocar nos dedos esquerdos do músico. "Por Deus, cara. Eu não deixaria você 'ver' a minha mão direita." "Mas você não toca com a mão esquerda", replicou o fã, agora sem resposta.

Pratas da casa: Um olhar sobre o passado


Murillo Di Maione é um dos grandes fotógrafos que tive o prazer de trabalhar. Optou por deixar o jornalismo para sobreviver e hoje trabalha com moda e fotos artísticas. Os registros a seguir foram feitos na Favela dos Trilhos, no setor Nova Vila, em Goiânia. Cerca de 30 família moravam na região sem qualquer tipo de infraestrutura ou segurança. Não é preciso ser um especialista para saber que quando o estado não estende seu braço sobre a população, o poder paralelo o faz – e a Favela dos Trilhos ficou conhecida como um dos grandes pontos do tráfico na capital. A violência explodiu e não tardou a aparecerem os primeiros corpos.


Eu morei próximo a região da Favela dos Trilhos e como tantos outros jovens da classe média vi amigos entrando no mundo das drogas – e nunca encontraram uma porta de saída. Um deles foi assassinado de forma brutal na favela. Finalmente o poder público agiu e retirou os moradores de lá, a maioria homens e mulheres de bem, que trabalhavam catando papel nas ruas de Goiânia. As pessoas foram retiradas sim, mas não por eficiência da administração, mas por pressão dos moradores vizinhos e dos próprios habitantes da favela – no mínimo dois protestos foram realizados na porta da prefeitura. Fica o registro de Murillo Di Maione.




sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Roubaram seus ídolos

Precisamos de um desses...

Frescobol de Luxo


O frescobol é um esporte genuinamente brasileiro criado no Rio de Janeiro na década de 1950. A moda pegou no exterior e agora os gringos lançaram um jogo de raquetes de luxo para a prática do esporte. No anúncio eles avisam que o design é inspirado em Copacabana e que a madeira também é tupiniquim - agregando toda uma cultura carioca às raquetes.


Não pude deixar de recordar o mestre Millôr Fernandes, jornalista, escritor, tradutor, jedi e um dos fundadores do jogo. No texto a seguir ele explica como foi criado o esporte número um das praias do Rio de Janeiro (fora o arrastão, claro).

"Pensando bem (dói um pouco), tomei como assunto o frescobol, de cuja criação me orgulho de ter participado, jogando com as primeiras bolas e raquetes (estas pesavam uma tonelada) que apareceram no Posto 4, no início dos anos 50. Atleta por vocação (não tenho nada a ver com intelequitoal), o Frescobol foi um esporte que cheguei a jogar bastante bem. Esporte maravilhoso, praticado à beira mar - os participantes quase nus - de tempo em tempo interrompido por um mergulho refrescante, o Frescobol é elegante e dinâmico o tempo todo, beneficiando-se ainda da sorte inaudita de nunca nenhum idiota ter tido a idéia de lhe traçar normas, aferir pontos - permanece até hoje uma atividade pura. Há competição, mas não formalizada, pontificada. Não há vencidos nem vencedores. Portanto sem possibilidade de violência. Segue meu princípio; 'O importante é nem competir.', diferente do conceito hipócrita do Conde de Coubertin: 'O importante é competir.' Em 1961, ambos viciados, addicts, do esporte, o colecionador Gilberto Chateaubriand e eu tentamos introduzi-lo no Egito, adentrando o gramado de um clube granfino do Cairo e jogando frescobol durante meia hora. O Nasser ficou boquiaberto com aquela invenção, que desde então passou a chamar de terceiro mundo. O terceiro mundo não colou, o esporte sim. Deixei de jogar Frescobol quando a polícia começou a perseguí-lo. Briguei algumas vezes e, como tive que correr pra não apanhar, passei a correr. Agora algumas vezes apenas ando, mas logo desisto e começo a correr, porque, se ando, a moçada comenta, me vendo passar: 'Puxa, ele ainda anda!'" 

Ah, essas crianças...


O fotógrafo da revista Life Anthony Karen entrou na igreja Westboro Baptist compound em Topeka, Kansas, em June 2008. O resultado do trabalho foi uma galeria bizarra.

Um pouco de literatura



Já contei em uma crônica a primeira vez que vi meu nome em letra de forma: foi no jornalzinho "O ltapemirim", órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim. O professor de Português passara uma composição "A Lágrima" — e meu trabalho foi julgado tão bom que mereceu a honra de ser publicado.

Eu ainda estava no curso secundário quando um de meus irmãos mais velhos — Armando — fundou em Cachoeiro um jornal que existe até hoje — o "Correio do Sul". Fui convidado a escrever alguma coisa, o que também aconteceu com meu irmão Newton, que fazia principalmente poemas.

Eu escrevia artigos e crônicas sobre assuntos os mais variados; no verão mandava da praia de Marataizes uma crônica regular, chamada "Correio Maratimba". Quando fui para o Rio (na verdade para Niterói) por volta dos 15 anos, mandava correspondência para o Correio. Continuei a fazer o mesmo em 1931, quando mudei para Belo Horizonte.

A essa altura meu irmão Newton trabalhava na redação do "Diário da Tarde" de Minas. Em começo de 1932 ele deixou o emprego e voltou para Cachoeiro; herdei seu lugar no jornal.
Passei então a escrever diária e efetivamente, e fui aprendendo a redigir com os profissionais como Octavio Xavier Ferreira e Newton Prates. Quando terminei meu curso de Direito, resolvi continuar trabalhando em jornal.

Fazia crônicas, reportagens e serviços de redação. Ainda em 1932 tive uma experiência bastante séria: fuI fazer reportagem na frente de guerra da Mantiqueira missão aventurosa porque a direção de meu jornal'era favorável à Revolução Constitucionalista dos paulistas, e eu estava na frente getulista. Acabei preso e mandado de volta.

A essa altura eu já era um profissional de imprensa, e nunca mais deixei de ser.

Texto extraído do livro "
Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 4.

Pornografia para amantes de livros


O site bookshelfporn.com reúne o que é conhecido como "pornografia para amantes de livros". Uma coleção de algumas das mais lindas bibliotecas pelo mundo - a maioria de particulares. O nome faz jus ao site.

Guitar Hero Ultimate

Para quem deseja me fazer FELIZ




O de cor preta, por favor.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Aqui é onde vivemos


This Is Where We Live from 4th Estate on Vimeo.



O vídeo acima rodou a internet algum tempo atrás. Ele foi elaborado para comemorar o 25º aniversário da 4th Estate Publisher. O título original é This is Where We Live, algo como "Aqui é onde vivemos", em tradução livre. Cerca de 20 animadores participaram do trabalho, o número de livros citados na animação ultra passa mil.

Desafio à gravidade


Todos os anos a prestigiada revista The New Scientist organiza um desafio de ilusão de ótica. O vídeo acima é do vencedor da edição do ano passado, criado por Koukichi Sugihara, do Instituto de Estudos Avançados de Ciências Matemáticas de Meiji, no Japão. Para quem ficou interessado, você já pode se inscrever para o desafio de 2011.

Um pouco de literatura




Conheci Raduan Nassar por meio de uma amiga, Lyanna, uma das mulheres mais inteligentes que já conheci. O texto a seguir é um forte exemplo da maestria desse escritor, o maior nome vivo da literatura brasileira.

Hoje de madrugada

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.


O texto acima foi extraído dos "Cadernos de Literatura Brasileira", Instituto Moreira Salles - Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.

Documentário: Não é uma ilusão


íde


Sara é uma jovem iraniana com uma grande voz – mas de acordo  com as leis do Irã, mulheres não podem cantar sozinhas em público. Ela então decidiu se juntar a banda de rock “Piccolo” como backvocal, mas ainda assim é preciso uma autorização especial do Ministério da Cultura e do Guia Islâmico para realizar uma apresentação. Mesmo com os papéis em ordem, a primeira apresentação do grupo foi cancelada instantes antes do show. Essa é a história de uma campeã de ginástica que foi afastada das competições após um acidente e que não quer desistir do sonho de ser cantora.